Comunicação, princípio, movimento, provocador de situações.
(Mãe Stella)
Aos que acreditam na irreverência da vida.
Os leigos na religião dos orixás, imersos no simbolismo do mal construído pelas igrejas e pelos detentores do poder durante a escravidão, aprenderam a conferir a Exu o princípio demoníaco da feitiçaria, da bruxaria e da maldade. No entanto, se lermos as poesias e as narrativas sobre Exu vamos mergulhar na profunda espiritualidade deste orixá, a qual é vital para nossas travessias e desafios. Longe de ser o diabo, Exu é o princípio dinâmico de comunicação e individuação, o princípio da existência cósmica e humana. Ele é o princípio que representa e transporta o axé (força vital), que assegura a existência dinâmica, permitindo o acontecer e o devir. Ele traduz aos homens as palavras dos orixás e simboliza a descendência, a intercomunicação, a participação. É ainda o símbolo da sexualidade e da fertilidade. Ele está ligado ao destino dos homens e mulheres e de tudo o que é vivo e tem vida. Na teologia tomista existe o conceito de “eidade”: tudo tem a sua razão ôntica, de ser. Todas as coisas têm, em potência, tudo aquilo que necessitam para serem o que realmente são. Este é o princípio de Exu: possibilitar que as coisas venham a tornar plena a sua vida interior: a sua “arvoreidade”, a sua “pedraeidade”, a sua “aguaeidade”, a sua “fogoeidade”, o seu “amoreidade”, etc...
Exu responde, no mais fundo de nós mesmos, pelo movimento da vida, introduzindo o acaso e a sorte no destino dos homens e mulheres; rompendo os modelos conformistas do universo, as psicologias do “ajustamento”; e nos levando aos desafios do novo e da desordem e da possibilidade permanente de mudanças. Ele nos questiona permanentemente, aos nos revelar que o mundo é produzido e que pode ser produzido de maneira diferente. Indaga-nos pelas nossas utopias e esperanças e nos mostra a fragilidade das nossas tentativas de criar sistemas e estruturas definitivas onde a vida fica limitada e sem horizontes.
Exu nos mostra que somos inefáveis como Deus, e como inefáveis somos a encarnação do desafio e da irreverência (ele troca o sol pela lua, etc); ele permite aos homens e mulheres a possibilidade de autodeterminação, de exercer o pensamento divergente, de confrontar as interdições sociais que limitam o gozo da liberdade. Como princípio dinâmico é o-não-ainda-possível.
Exu é o pai da luta: duelo e desafio. A vida é luta, e a solidariedade para a vida é luta e se faz na luta. O que mais une os homens e mulheres, uns com os outros, são duas discórdias, quando as diferenças são respeitadas e confrontadas. O que mais une cada um de nós conosco mesmos, o que faz a unidade íntima de nossa vida são nossas discórdias íntimas, as contradições interiores de nossas discórdias. Só se esta em paz consigo mesmo para morrer.
O modo de viver e de lutar e de lutar pela vida e viver da luta é duvidar.
E o que é dúvida? Dubitare contém a mesma raiz, a do numeral duo, dois, que duellum, luta. A dúvida, mais que a pascaliana, a dúvida agônica ou polêmica, que não a cartesiana ou dúvida metódica, a dúvida de vida – vida é luta – e não de caminho – método é caminho – supõe a dualidade do combate.
Exu é o entusiasmo permanente de vida e luta. É entusiasmo no seu verdadeiro significado é o mesmo que endeusamento. O entusiasta é um endeusado, o que plenifica de Deus. Por isso Exu é a quem se devota afeição e amizade, a quem se confia os segredos mais íntimos e as promessas e pedidos a serem atendidos. Ele é a encarnação do entusiasmo e do endeusamento. Tudo o que existe tem o seu Exu, porque tudo tem vida e participa intimamente desta força vital de Deus.
Se Exu, no culto de Ifá, “fala” pelos odus – palavras dos orixás – traduzindo-as para os homens e mulheres, no domínio de Ossaim é quem abre as portas para que cada orixá – que tem as suas próprias folhas – possa fixar-se na cabeça – ori - dos seus filhos e filhas. No reino dos Egum é quem permite a passagem deles para o corpo das crianças que vão nascer... Não há morte nesta teologia, mas uma transformação permanente de vida em busca da plenitude e da ancestralidade.
Nenhum transe místico se realizaria no candomblé se não fosse primeiramente celebrado o seu padê, se não lhe tivessem pedido que levasse aos orixás o desejo dos homens e mulheres, convidando-os para virem dançar nas festas.
Nesta dimensão, o tempo de Exu é o tempo oportuno – Kairós -, o aqui-e-agora: o axé hic et nunc. Os orixás dançam e celebram com seus filhos e filhas naquele exato momento, e a troca da força vital é realizada na relação comunitária, religiosa, na qual cada gesto, dança, canto e comida são prenhes de significado e de vida.
A representação simbólica de Exu com chifres talvez possa ter influenciado, pelo ideário caricato das igrejas, a sua identificação com o diabo. Esta representação, no entanto, é anterior à construção do Antigo Testamento, cujo livros foram escritos após o Exílio e que, com certeza, tiveram toda a influência dos símbolos e arquétipos africanos.
O chifre tem o sentido primitivo de elevação e seu simbolismo é o poder: “Farei germinar um chifre, um corno para David” (Sl 132.17). Ele simboliza a força de Deus e evoca o prestígio da força vital (axé), da vida inesgotável e das grandes divindades da fecundidade: “Me resguardo Nele, meu escudo e meu corno de salvação” (Sl 18.4).
O cosmos, segundo a teologia iorubana, está dividido em quatro compartimentos e é a criação de um único Deus: Olorum. É preciso que a divisão não suprima a unidade e que os quatro compartimentos se liguem entre si. É Exu quem abre as portas e traça os caminhos e cuja missão é criar aberturas entre os quatro reinos, furar as paredes que os separam uns dos outros, fazendo-os entrarem em comunicação por seu intermédio e assegurando, assim, a união cósmica.
Os quatro cornos dos altares dos holocaustos situados no Templo designam as quatro direções do espaço: a extensão ilimitada do poder de Deus. Carl Yung aponta a ambivalência no simbolismo dos cornos. Eles representam um princípio ativo e masculino, por sua forma e por sua força de penetração, e um princípio passivo e feminino por sua forma de lira e de receptáculo. O ser humano, reunindo ambos os princípios na formação de sua personalidade e assumindo-se integralmente, chega à maturidade, ao equilíbrio e a harmonia interior.
Èsù fi ire bò wá o.
Exu faça a nossa vida plena das coisas boas.
No hebreu, Ruah – traduzido para o grego Pneuma – significa sopro, hálito, ar, vento e alma. Nas 378 vezes que o termo é empregado no Antigo Testamento, ele é distribuído em três grupos de igual importância:
É o vento, o sopro de ar;
É a força viva com o homem, princípio de vida (hálito), sede de conhecimento e dos sentimentos;
É a força de vida de Deus, pela qual age e faz agir tanto no plano físico quanto no espiritual.
No grego profano e no uso filosófico, pneuma exprime a substância viva e geradora nos animais, nas plantas e em todas as coisas. Na Bíblia o ruah-sopro não é desencarnado, pelo contrário, é a animação do corpo. Se o mundo cultural grego pensa em categorias de substância, o mundo judaico pensa em força, energia e princípios de ação. O espírito-sopro é o que age, faz agir, e em se tratando do Sopro de Deus anima e faz agir para realizar o desígnio de Deus. É sempre uma energia de vida. A espiritualidade não consiste, então, em se tornar imaterial, mas ser animado pelo Espírito Santo e, por que não dizer, o axé de Exu?
Este ruah-pneuma é o vento: “sopra onde quer e como quer, ninguém sabe de onde vem nem para onde vai” (Jo 3.8); é o hálito de Deus que comunica a vida: “ o céu foi feito com a palavra de Javé e seu exército com o sopro de sua boca” (Sl 33.6); o hálito do homem e da mulher, princípio e sinal de vida: “morreu tudo o que tinha um sopro de vida nas narinas” (Gn 6.22); e a animação que realiza uma obra: “eu o enchi com o espírito de Deus em sabedoria, habilidade e perícia para toda espécie de trabalho” (Ex 31.3).
O Sopro recebe diversas qualificações, segundo os efeitos dos quais é o princípio: espírito de inteligência (Ex 28.3); de sabedoria (Dt 31.3); de ciúmes (Nm 5.14); de ódio (Jz 9.23); de prostituição (Os 4.12); de impureza (Za 13.2); de justiça (Is 28.6) e de súplica (Za 12.10). O Antigo Testamento hesita em associar os espíritos perversos a um outro que não seja Deus: “Suscitou Deus um espírito de aversão” (Jz 9.23); “O espírito maligno da parte do Senhor tornou sobre Saul” (1 Sam 19.9); “Eis que o Senhor pôs o espírito mentiroso na boca de todos estes teus profetas e o Senhor falou o que é meu contra ti” (1 Rs 22.23).
Quando o mau espírito da parte de Javé se apossou de Saul, ele procurou transpassar David, que tocava sua lira, com a sua lança. David desviou e a lança de Saul ficou cravada no muro. David fugiu ajudado por Micol, sua mulher, e Saul, não contente, mandou mensageiros para prender David. Mas o espírito de Deus, paradoxalmente, veio sobre os emissários e eles foram tomados de delírio. Em seguida, mais dois grupos de emissários, enviados por Saul para matar David, foram também possuídos pelo Espírito de Deus, e entrando em delírio, não puderam matá-lo. Finalmente, o próprio Saul foi para matar David: “Mas o Espírito de Deus também se apossou dele e ele caminhou delirando até chegar às celas em Ramá onde estavam David e Samuel. Também ele se despojou de suas vestes, também ele delirou diante de Samuel e depois caiu no chão, nu, e ficou assim todo aquele dia e toda a noite. Daí o provérbio: está também Saul entre os profetas?” (1 Sam 19.9ss). E assim o Espírito Santo de Deus – numa irreverência aprendida de Exu – expôs o rei ao ridículo...
Saul é o último dos juízes e o primeiro dos reis. A partir da instituição da realeza, o empreendimento mediador do sopro-espírito cessa. Quando Samuel unge o último dos filhos de Jésse, “o espírito do Senhor funde-se com David a partir deste dia” (1 sam 16.13). Com David, alguma coisa acontece de definitivo e nós podemos seguir a continuidade pela profecia de Natan (2 Sam 7); a de Isaías (ls 11.1-2); e a de Lucas (Lc 3.31).
O mais importante nisso tudo é que o Cristo revelado em Jesus da cidade de Nazaré é da linhagem de David, não porque nele também havia esta fusão do Espírito-Sopro. O Emanuel – Deus Conosco – é este sopro de vida, este axé onde funde-se o princípio vital de individuação e comunicação – Exu -, mediador entre Deus e os homens e mulheres, princípio de vida, de liberdade, de amor, de generosidade, oferenda, ebó, bênção, justiça, santidade, equilíbrio cósmico e todos etcéteras que couberem, cabem e caberão nesta nossa travessia da vida. O Cristo é avesso, como Exu, aos dogmas, preconceitos e autoritarismos que revestem as instituições. Ele parte e envia o seu espírito de liberdade na festa do fogo, de Pentecostes, que como princípio dinâmico continua a animar a vida dos homens e mulheres na liberdade, na ternura e na luta.
Em tempo, Exu é uma divindade do fogo. Ele trouxe o Sol e sua festa é no solstício de verão.
O que gostaria de apontar é que a espiritualidade, ou melhor, a vida segundo o Espírito, segue toda a trajetória desta simbólica inaugurada pela teologia iorubana, com certeza mais antiga que a hebraica e que, sem dúvida, determinou toda a linguagem veterotestamentária. O mais importante é que Exu, como o Espírito Santo, não se deixa aprisionar pelos espíritos mesquinhos dos homens e das mulheres, pelas suas miopias e sua arrogância, mas está vivo e atuante em todos os que buscam o equilíbrio cósmico, da natureza com o humano com o divino e com todas as plurais combinações possíveis nesta nossa “travessia perigosa, mas que é a da vida”.
Em síntese, tanto Exu como Emanuel estão no movimento do Espírito, de geração em geração, por todos os séculos, longe dos aprisionamentos institucionais das igrejas e seitas, revelando-se e manifestando-se nas formas diversas plurais que conseguem, sempre festejando a força da vida, no meio dos seus amados e amadas, na festa anunciada e vivida, na mesa farta, repartida em mancheias para todos os que chegam, não importando a sua fé, sua cor e seus caminhos. Esta escrito que “Àse Èsù yóò bá o gbé làyè” (“O axé de Exu vai acompanhar você por toda a vida”) e que “a loucura de Deus é mais sábia que os homens” (1 Cor 1.25).
Laroyé!
Solitude, primeiro de novembro de 1994.
Festa de Todos os Santos
TRINDADE, Liana Sílvia. Exu símbolo e função. Coleção Religião e Sociedade Brasileira, vol. 2. São Paulo, USP/FFLCH, s.a. p. 80.
SODRÉ, Muniz, A verdade seduzida. Rio de Janeiro, Coderci, 1983. p. 143ss.
UNAMUNO, Miguel. La agonia del Cristianismo. Madrid, Alianza Editorial, 1992. p. 31
BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia. Coleção Brasiliana. São Paulo, Companhia da Editora Nacional, 1961. p. 224.
CONGAR, Yves. Je crois en I’Esprit Saint. Paris, Ed. du Cerf, 1981. v. 1, p. 19ss
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BOTAS, Paulo Cezar Loureiro. Exu: Ruah, Pneuma, Espírito Santo. In: _________. Carne do Sagrado, Edun Ara: devaneios sobre a espiritualidade dos orixás. Rio de Janeiro/Petrópolis: Koinonia Presença Ecumênica e Serviço/Vozes, 1996. p. 33-40