Nós, estudantes, pesquisadores, multiplicadores e vivenciadores da religião de matriz africana, integrantes do Egbé Òrun-Àiyé/RS, vimos a público manifestar nossa indignação em relação à matéria veiculada no dia 11 de outubro de 2009, no programa Teledomingo da RBS TV, em que pretendia desvendar “mistérios das religiões afro-brasileiras”. De maneira irresponsável e desrespeitosa, a referida emissora de TV permitiu que imagens de rituais de diferentes religiões, com processos históricos e pressupostos teológicos completamente distintos fossem editadas de tal forma que, quem assistisse, pudesse supor que se tratavam da mesma concepção religiosa e, mais grave ainda, com uma abordagem preconceituosa, racista e vazia de significados e de contextualização.
Os integrantes do Egbé Òrun-Àiyé/RS – Associação Afro-brasileira de Estudos Teológicos e Filosóficos das Culturas Negras do Rio Grande do Sul, organização não-governamental e sem fins lucrativos, que tem entre seus objetivos estatutários promover o ensino, o estudo e a pesquisa científica acerca dos pressupostos teológicos e filosóficos da Cosmovisão Africana; defender a liberdade religiosa, bem como atuar contra a intolerância religiosa e contra o processo de afrotheofobia que se avoluma no país; impetrar ações judiciais contra publicações e veiculações nas mídias que, de maneira explícita ou implícita, vilipendiem, agridam, difamem ou negativamente se refiram às Religiões de Matriz Africana e Afro-Brasileira, atribuindo-lhes índole maléfica; entre outros objetivos, manifestam:
1. O negro no Rio Grande do Sul, em que pese seu papel fundamental na construção, constituição e formação cultural e social deste Estado, sempre sofreu e ainda sofre perseguições de cunho racista e discriminatório em relação à sua cor de pele e, fundamentalmente, em relação às suas manifestações culturais e religiosas, como a invisibilidade e ausência de Políticas Públicas que incluam as casas e/ou comunidades-terreiro de religião de matriz africana; as repetidas medidas judiciais e legislativas que atentam contra a liberdade de culto assegurada pelo artigo 5º da Constituição Federal; entre outras formas de violência simbólica;
2. As igrejas neopentecostais ou eletrônicas no Brasil têm apresentado um crescimento espantoso no Brasil nas últimas décadas, e seus fiéis tem avançado cada vez mais em todos as esferas de poder do país, seja no meio empresarial, no terceiro setor, nas instituições do Estado como Judiciário, Executivo e sobretudo nos Legislativos municipais, estaduais e federal. Mais preocupante ainda é a tomada de concessões públicas – os meios de comunicação – de diversas mídias: rádios, jornais, internet e televisão, que tornaram-se meio principalmente de divulgação da teologia do mal, em que as religiões de matriz africana são demonizadas e transformadas em alvo de uma guerra santa impetrada pelos líderes de tais igrejas;
3. Os religiosos de matriz africana, tendo outra forma de organização e de articulação, silenciosos em seus terreiros onde se dedicam a atividades de promoção da saúde metal, física e espiritual dos vivenciadores da tradição dos Orixás, Inquices e Voduns, mesmo sendo detentores de saberes e tradições milenares e constituidoras da civilização humana através de seu berço africano, estão se tornando reféns do desrespeito à sua condição, da intolerância religiosa, do racismo e da gananciosa disputa pela busca de seguidores, considerados futuros dizimeiros e mão-de-obra barata destas instituições;
4. Por outro lado, cabe salientar que as religiões de matriz africana descendem de sociedades africanas em que a palavra falada é o veículo principal de sabedoria e de axé (poder/energia), portanto, é através da oralidade que se perpetuam os rituais, transmitidos e praticados dentro de um compromisso com seu transmissor. Ocorre que, pessoas mal preparadas ou mesmo inescrupulosas, aproveitam-se das lacunas desta oralidade para intitularem-se sacerdotes e utilizam práticas que não dizem respeito à tradição. A partir disso, é preciso que se esclareça a sociedade sobre as diferenças entre as práticas originais e comprometidas com a tradição de matriz africana e as demais concepções originadas de outras culturas não-africanas ou indígenas e, portanto, exógenas e antagônicas às religiões de matriz africana;
5. Diante do exposto, ressaltamos nossa indignação em relação ao referido programa de televisão que não levou em consideração a luta contra intolerância religiosa e o racismo por que passam as religiões de matriz africana no Brasil e, especialmente no Rio Grande do Sul, configurando assim um desserviço à cultura e à informação do povo gaúcho, objetivos que deveriam ser perseguidos por esta instituição de mídia por se tratar de concessão pública. Acreditamos que, com o esforço desta geração de vivenciadores das religiões de matriz africana e das anteriores que nos trouxeram até aqui, possamos conscientizar a sociedade gaúcha e brasileira de que os terreiros são detentores de sabedoria ancestral milenar, promotores de saúde integral, espaços de transmissão das culturas negras, de desenvolvimento intelectual, moral e espiritual da pessoa humana, preservadores e adoradores da natureza e de todos os seus elementos – animais, plantas, águas, minerais, etc, espaços de convivência comunitária e familiar, ou seja, lugares sagrados e dignos de respeito como qualquer outra cultura.
Porto Alegre, 13 de outubro de 2009.
Assinam os membros do Egbé Òrun-Àiyé/RS:
Vanessa Efunpàdé Martins – Yalaxé, jornalista e coordenadora de comunicação
Nenhum comentário:
Postar um comentário