“A
escrita é uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fotografia do
saber, mas não
o
saber em si. O saber é uma luz que existe no homem. A herança de
tudo aquilo
que
nossos ancestrais vieram a conhecer e que se encontra latente em tudo
o que nos
transmitiram,
assim como o baobá já existe em potencial em sua semente”.
Tierno
Bokar
Não
é novidade a sentença do excelentíssimo juiz
federal Eugênio Rosa de
Araújo. A criminalização de nossas práticas existe desde a
colonização do Brasil. Se
durante os
períodos
convencionalmente chamados
pela historiografia de Brasil Colônia
e Brasil Império a
nossa tradição era perseguida como satanismo, durante a República
o motivo mudou mas a perseguição persistiu, agora como
charlatanismo e curandeirismo. Apesar
da Constituição de 1988, quando retorna a democracia e as tradições
de matriz africana são reconhecidas e ganham espaço, surge um
recrudescimento das intolerâncias que, na última década,
resultaram em dezenas de Leis propostas por legisladores evangélicos
nos legislativos de todo o país, nas esferas municipais, estaduais e
federal, com o intuito de coibir as práticas da tradição de matriz
africana.
A
sentença do juiz Araújo
no
último dia
25 de abril é mais uma
faceta dessa sequência de acontecimentos. Segundo ele
a umbanda e o candomblé não podem ser entendidos
como religião porque lhes faltam características típicas de uma
manifestação religiosa como um texto-base, uma hierarquia e a
crença num deus.
Pois
bem, vamos comparar a afirmação do excelentíssimo juiz com a nossa
realidade a luz de nossa
Teologia. Toda religião
possui um texto sagrado que a orienta. O problema para a cultura
ocidental é o
pressuposto de que todo
texto é escrito, o que
diverge de nossa tradição que é oral,
ou seja, é guardado na
memória e verbalizado sempre que necessário, pois é a verbalização
que o caracteriza como sagrado. O ar que sai de nossa boca foi
presente de Olódùmarè
e
como tal, sempre que pronunciamos algo este é entendido como
emanação do sagrado.
Para Amadou Hampâté Bâ,
etnólogo malinês, a tradição oral é, ao mesmo tempo, “religião,
conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história,
divertimento e recreação, uma vez que todo pormenor sempre nos
permite remontar à Unidade primordial”, pois a palavra falada
possui um “caráter sagrado vinculado à sua origem divina e às
forças ocultas nela depositadas”. Por
isso é inconcebível a mentira em nossa tradição.
Isto tem que ser bem
entendido, pois, devido ao epistemicídio1
orquestrado pela sociedade ocidental, até nosso
próprio povo ignora,
ainda que o use
cotidianamente, que possuímos um texto sagrado.
“Não temos uma
bíblia”, dizem. Temos
sim. Temos
chamado de Onìmọ̀
Mẹ́fà,
ou as seis sabedorias: Ifá
(Histórias
Sagradas), Oriki
(louvações),
Adúrà
(rezas),
Orin
(cânticos
sagrados), Òwe
(provérbios)
e Orò
(ritos).
São
os nossos orientadores teológicos, filosóficos e litúrgicos.
É
através deste estudo afroteológico que temos compreendido a
natureza dos Òrìṣà. Ao contrário do que se diz os Òrìṣà não são deuses, nem espíritos superiores ou ancestrais divinizados. São divindades, criações de Olódùmarè. Estão no mundo para desenvolver tarefas específicas na manutenção de toda a vida na Terra e no auxílio aos seres humanos ao conduzir suas vidas para um bom caminho. Olódùmarè, por outro lado, é um Ser Supremo. É verdadeiramente Deus e é único. Então entendemos que teologicamente somos monoteístas, afinal temos um único Deus.
Por fim temos a questão da hierarquia. Bem, não entendemos porque o excelentíssimo juiz afirmou que não há hierarquia nas tradições de matriz africana, afinal todos já ouviram falar em pais e mães de santo e filhos de santo. Como esta é uma tradição civilizatória, a hierarquia se apresenta como numa grande família onde o líder máximo é o Bàbálórìṣà ou Ìyálórìṣà, ou seja, o pai e a mãe, tendo seus iniciados como filhos espirituais. O que talvez o juiz não saiba é que ainda entre os Ọmọ̀rìṣà (filhos/as de santo) também há uma hierarquia que depende do tempo de iniciação. O mais velho do mais alto grau iniciático é superior na hierarquia. Temos
que propagar estas
ideias
para desarmarmos pessoas como este juiz que obviamente
não entende nossa
tradição.
No
início deste ano realizamos uma manifestação pública, a VI Marcha
Estadual Pela Vida e Liberdade Religiosa cuja pauta era a criação
de uma Delegacia de Combate ao
Racismo e às Intolerâncias Correlatas. No manifesto já aludíamos
a necessidade de uma melhor adequação às demandas
do povo de terreiro, dos
aparatos jurídicos.
Além de exigirmos a
criação da
Delegacia, também
reivindicamos educação
e formação das polícias militar e civil para que se apropriem
conceitualmente do que são as tradições de matriz africana;
capacitação de
delegados, juízes e advogados para
atuarem com propriedade
nas questões que envolvem
as tradições de matriz africana e afro-brasileiras. O
judiciário tem o dever de promover o respeito mútuo para que
haja uma sociedade mais digna e democrática tanto ética quanto
moralmente; e para que haja a reparação histórica dos danos
causados pelo próprio Estado às tradições de matriz africana e
afro-brasileiras.
Desconstruindo esse paradigma
do mal fundado em ideologias excludentes, racistas e xenófobas.
Entendemos
que a denotação laica do Estado jamais deve ser questionada,
entrementes, é crucial que se entenda, também, que as ações
públicas e civis contra as tradições de matriz africana são atos
político-sociais e que é dever do Estado Democrático de Direito
“assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a
liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade
e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos”. (CF, 1988)
O
juiz federal Eugênio Rosa de
Araújo ao negar o
status de religião às tradições de matriz africana e
afro-brasileiras, rasgou todos os códigos democráticos
internacionais assinados pelo país. Rasgou o Estatuto da Igualdade
Racial. Rasgou a própria Constituição Federal.
Púpọ̀ Àṣẹ Gbogbo!
Hendrix Silveira
Coord. Geral do Ẹgbẹ́ Ọ̀run Ayé – Associação Afro-Brasileira de Estudos Teológicos e Filosóficos das Culturas Negras
Bàbálórìṣà do Ilé Àṣẹ Òrìṣà Wúre
Mestrando em Teologia e História (EST)
Especialista em Ciências da Religião (UCAM)
Licenciado em História (FAPA)
Bolsista CAPES
Presidente da ATRAI – Associação Nacional de Teólogos e Teólogas da Religião de Matriz Africana e Indígena
Ọmọ̀rìṣà de Òṣàgiyán
Bacharel em Teologia (PUC/PR)
Licenciado em Ciências da
Religião (PUC/PR)
Assessor da Coordenação de
Saúde da População Negra – Secretaria de Estado da Saúde do RS
Luís Eduardo Rodrigues
Diretor da ESTAF – Escola de Filosofia e Teologia Afrocentrada
Ọmọ̀rìṣà de Ògún
Licenciado em Filosofia (UFRGS)
Professor da Rede Estadual de Educação
Referências
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JESUS,
Jayro Pereira de. Manifesto do Ẹgbẹ́/RS pelo respeito às
religiões de matriz africana. Disponível em
.
Acesso em 08/01/2013.
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das Religiões de Matriz Africana ao Governo do Estado do RS.
Disponível em
<http://www.babadybadeyemonja.com/2011/11/repressentantes-das-religioes-de-matriz.html>.
Acesso em 08/01/2014.
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SANTOS,
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SILVEIRA,
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Militar em Porto Alegre (1964-1985). No prelo.
______. Afroteologia: elementos epistemológicos para se pensar numa teologia das religiões de matriz africana. In: Deus na sociedade plural: fé, símbolos, narrativas: anais do congresso da SOTER / Sociedade de Teologia e Ciências da Religião. Belo Horizonte: PUC Minas, 2013. p. 1133-1143.
1 Boaventura de Sousa Santos designa por epistemicídio, o processo de destruição criativa promovido pela ciência moderna em defesa do seu privilegiado estatuto.
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