Teologia e tradição dialogam em seminário promovido pelo Egbé
Afro-religiosos de todo o Estado participaram do encontro
Por Vanessa Efunpàdé - jornalista e membro do Egbé*
“O Orixá é um promotor de saúde, porque o corpo é o altar sagrado do Orixá. Quem não pratica atitudes saudáveis está agredindo o sagrado. Portanto, o conceito de saúde para a religião de matriz africana é muito mais ampliado, mais abrangente, pois não somos um conjunto de peças, mas uma coletividade. O ser humano faz parte de um todo. Temos que despertar as pessoas para uma qualidade de vida que o terreiro pode tranquilamente proporcionar, devido a este conceito de saúde integral”. Esta é uma das reflexões trazidas pelo Babalorixá Dyba de Iyemanjá, sacerdote do Ilê Axé Omi Olodô e Coordenador Estadual da Rede Nacional de Religiões Afro- Brasileiras e Saúde, que apresentou a palestra "Os Terreiros como espaço de saúde", na mesa “Batuque e Saúde”, do Seminário Estadual de Estudos das Religiões de Matriz Africana – Construindo Saberes: a Religião Afro-Gaúcha. O evento, promovido pela ONG Egbé Òrun-Àiyé/RS neste sábado, dia 22, reuniu sacerdotes e sacerdotisas, jovens iniciados, integrantes do Movimento Negro e universitários para discutir saúde, educação e pós-morte na religião afro-brasileira sob o ponto de vista da Teologia e Filosofia de Matriz Africana.
A Omorixá Míriam Oloriobá Alves, doutoranda em Psicologia Social pela PUCRS, integrou o debate através da palestra “O terreiro de matriz africana como espaço de produção de saúde mental”. Para Oloriobá, o espaço do terreiro possibilita que as pessoas sejam sensibilizadas para uma relação mais humana, pois é um local de acolhimento, de trocas. “Não existe a possibilidade de uma pessoa sair de um terreiro sem qualquer assistência. Sempre se oferece algo, nem que seja uma conversa, um abraço”, lembrou ela. “Esta relação mais humana, mas próxima, é que muitas vezes falta no sistema de saúde”. A pesquisadora, que realizou seu trabalho numa comunidade-terreiro, destaca que os religiosos de matriz africana concebem a saúde numa dimensão física e espiritual, o que é ignorado pelo Sistema Único de Saúde.
Discriminação na escola e formas de enfrentamento
Mas não é apenas no SUS que a população afro-religiosa não está contemplada e compreendida. Na escola, assim como nos demais espaços públicos, embora o Estado brasileiro seja laico, o que se sobressai é religião do poder dominante, ou seja, a cristã. É o que conclui a doutora em História, coordenadora do GT Negros e do Grupo Africanidades, Ideologias e Cotidiano do Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS Prof. Lúcia Regina Brito Pereira. Ela analisou as relações entre professores e alunos nos espaços escolares e percebeu, por exemplo, que o Ensino Religioso tem um viés europocêntrico, reflexo do preconceito racial. “O professor é um formador de opinião e tem o papel de desmistificar estes preconceitos. Ele é parte fundamental na implementação da Lei 10.639/03 (alterada em 2008 para Lei 11.645/08), que inclui o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena nos currículos escolares”. Lúcia propõe que as escolas busquem apoio nos movimentos sociais para a efetivação da Lei, trazendo para as salas de aula a importância da religião para a comunidade negra, a perseguição histórica desta população, o papel histórico da mulher negra na religião, a forma de organização social das religiões de matriz africana, entre outras contribuições.
“Se a escola não está cumprindo o seu papel, não podemos ficar esperando pelo governo”. Pensando assim, a ONG Africanamente deu seu exemplo de transformação social por meio do projeto Ori Inu Erê, desenvolvido na comunidade-terreiro Ilê Axé Omi Olodô, em Porto Alegre. O projeto, que está no seu terceiro ano, foi apresentado pelo educador popular e Babáegbé do terreiro, Mário Sangó Obafemi da Rosa. A iniciativa foi pensada como uma estratégia de reação aos ataques das igrejas neopentecostais. “Na época, estas igrejas mostravam na TV programas que associavam a religião afro-brasileira ao demônio. Mãos negras manipulavam elementos considerados ‘do mal’. Isto teve um impacto muito negativo nas crianças da comunidade, que passaram a questionar as práticas religiosas de suas famílias”, disse ele. Através dos pressupostos da cosmovisão africana, o projeto pedagógico buscou desconstruir o racismo e formar uma consciência positiva, através da valorização da cultura negra e do papel do negro na sociedade. Um dos resultados deste trabalho foi o nível de repetência, que chegou a quase zero. Este ano, o Africanamente lançou o caderno pedagógico do projeto, para ajudar outros terreiros a multiplicar a idéia.
A morte na teologia africana
Em sua fala, o Babalorixá Dyba de Iyemanjá lembrou um episódio em que ele e os integrantes de seu terreiro foram proibidos de realizar um rito funerário africano nas dependências de um crematório ecumênico. “Como vice-presidente da Congregação em Defesa das Religiões Afro-brasileiras conheço meus direitos e realizamos nosso ritual”, disse. Situações como esta são freqüentes entre os religiosos africanistas, mas poderiam ser evitadas. Para isso é necessário que a teologia acerca da morte seja melhor compreendida entre seus próprios iniciados. Com este propósito, o professor Hendrix de Orumilaia, omorixá do Ilê Oxum Docô e coordenador do Egbé Orun-Àiyé/RS apresentou a conferência “O pós-morte nas Religiões de Matriz Africana", falando sobre o conceito de morte, de Egun e de seu destino após o falecimento do corpo, os nove espaços do Òrun, a reencarnação, e algumas implicações destes conceitos nos dias atuais, como a doação de órgãos e de sangue, aborto, cremação, pesquisas com células-tronco, entre outros. “Está na hora dos africanistas discutirem estes assuntos à luz da teologia africana e tomar algumas decisões. Podemos doar órgãos? Esta é uma resposta que precisamos construir ainda”, ressaltou ele.
O culto de Egungun, entidade representativa nos Eguns na cultura africana, surgiu também no vídeo "Atlântico Negro: Na Rota dos Orixás", de Renato Barbieri, apresentado e debatido no evento. O documentário mostra o continuum africano no Brasil, preservado fundamentalmente pelos terreiros em todo o Brasil. As discussões destacaram a importância dos africanos na formação e desenvolvimento da sociedade e da economia brasileira. “Sempre se fala da cultura, da música, da dança, do futebol, mas o negro trouxe muito mais do que isso. Foi ele quem trouxe a tecnologia e a experiência na criação do gado extensivo, na agricultura, na mineralogia. Eles eram experts em várias áreas estratégicas para o Brasil e por isso que foram trazidos para cá, não os europeus, como dizem os livros”, denunciou Gilmar de Ogun, omorixá e membro do Egbé Òrun-Àiyé.
Café Cultural - roda de samba!
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