sábado, 29 de novembro de 2008
Seminário
Afro-religiosos de todo o Estado participaram do encontro
Por Vanessa Efunpàdé - jornalista e membro do Egbé*
“O Orixá é um promotor de saúde, porque o corpo é o altar sagrado do Orixá. Quem não pratica atitudes saudáveis está agredindo o sagrado. Portanto, o conceito de saúde para a religião de matriz africana é muito mais ampliado, mais abrangente, pois não somos um conjunto de peças, mas uma coletividade. O ser humano faz parte de um todo. Temos que despertar as pessoas para uma qualidade de vida que o terreiro pode tranquilamente proporcionar, devido a este conceito de saúde integral”. Esta é uma das reflexões trazidas pelo Babalorixá Dyba de Iyemanjá, sacerdote do Ilê Axé Omi Olodô e Coordenador Estadual da Rede Nacional de Religiões Afro- Brasileiras e Saúde, que apresentou a palestra "Os Terreiros como espaço de saúde", na mesa “Batuque e Saúde”, do Seminário Estadual de Estudos das Religiões de Matriz Africana – Construindo Saberes: a Religião Afro-Gaúcha. O evento, promovido pela ONG Egbé Òrun-Àiyé/RS neste sábado, dia 22, reuniu sacerdotes e sacerdotisas, jovens iniciados, integrantes do Movimento Negro e universitários para discutir saúde, educação e pós-morte na religião afro-brasileira sob o ponto de vista da Teologia e Filosofia de Matriz Africana.
A Omorixá Míriam Oloriobá Alves, doutoranda em Psicologia Social pela PUCRS, integrou o debate através da palestra “O terreiro de matriz africana como espaço de produção de saúde mental”. Para Oloriobá, o espaço do terreiro possibilita que as pessoas sejam sensibilizadas para uma relação mais humana, pois é um local de acolhimento, de trocas. “Não existe a possibilidade de uma pessoa sair de um terreiro sem qualquer assistência. Sempre se oferece algo, nem que seja uma conversa, um abraço”, lembrou ela. “Esta relação mais humana, mas próxima, é que muitas vezes falta no sistema de saúde”. A pesquisadora, que realizou seu trabalho numa comunidade-terreiro, destaca que os religiosos de matriz africana concebem a saúde numa dimensão física e espiritual, o que é ignorado pelo Sistema Único de Saúde.
Discriminação na escola e formas de enfrentamento
Mas não é apenas no SUS que a população afro-religiosa não está contemplada e compreendida. Na escola, assim como nos demais espaços públicos, embora o Estado brasileiro seja laico, o que se sobressai é religião do poder dominante, ou seja, a cristã. É o que conclui a doutora em História, coordenadora do GT Negros e do Grupo Africanidades, Ideologias e Cotidiano do Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS Prof. Lúcia Regina Brito Pereira. Ela analisou as relações entre professores e alunos nos espaços escolares e percebeu, por exemplo, que o Ensino Religioso tem um viés europocêntrico, reflexo do preconceito racial. “O professor é um formador de opinião e tem o papel de desmistificar estes preconceitos. Ele é parte fundamental na implementação da Lei 10.639/03 (alterada em 2008 para Lei 11.645/08), que inclui o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena nos currículos escolares”. Lúcia propõe que as escolas busquem apoio nos movimentos sociais para a efetivação da Lei, trazendo para as salas de aula a importância da religião para a comunidade negra, a perseguição histórica desta população, o papel histórico da mulher negra na religião, a forma de organização social das religiões de matriz africana, entre outras contribuições.
“Se a escola não está cumprindo o seu papel, não podemos ficar esperando pelo governo”. Pensando assim, a ONG Africanamente deu seu exemplo de transformação social por meio do projeto Ori Inu Erê, desenvolvido na comunidade-terreiro Ilê Axé Omi Olodô, em Porto Alegre. O projeto, que está no seu terceiro ano, foi apresentado pelo educador popular e Babáegbé do terreiro, Mário Sangó Obafemi da Rosa. A iniciativa foi pensada como uma estratégia de reação aos ataques das igrejas neopentecostais. “Na época, estas igrejas mostravam na TV programas que associavam a religião afro-brasileira ao demônio. Mãos negras manipulavam elementos considerados ‘do mal’. Isto teve um impacto muito negativo nas crianças da comunidade, que passaram a questionar as práticas religiosas de suas famílias”, disse ele. Através dos pressupostos da cosmovisão africana, o projeto pedagógico buscou desconstruir o racismo e formar uma consciência positiva, através da valorização da cultura negra e do papel do negro na sociedade. Um dos resultados deste trabalho foi o nível de repetência, que chegou a quase zero. Este ano, o Africanamente lançou o caderno pedagógico do projeto, para ajudar outros terreiros a multiplicar a idéia.
A morte na teologia africana
Em sua fala, o Babalorixá Dyba de Iyemanjá lembrou um episódio em que ele e os integrantes de seu terreiro foram proibidos de realizar um rito funerário africano nas dependências de um crematório ecumênico. “Como vice-presidente da Congregação em Defesa das Religiões Afro-brasileiras conheço meus direitos e realizamos nosso ritual”, disse. Situações como esta são freqüentes entre os religiosos africanistas, mas poderiam ser evitadas. Para isso é necessário que a teologia acerca da morte seja melhor compreendida entre seus próprios iniciados. Com este propósito, o professor Hendrix de Orumilaia, omorixá do Ilê Oxum Docô e coordenador do Egbé Orun-Àiyé/RS apresentou a conferência “O pós-morte nas Religiões de Matriz Africana", falando sobre o conceito de morte, de Egun e de seu destino após o falecimento do corpo, os nove espaços do Òrun, a reencarnação, e algumas implicações destes conceitos nos dias atuais, como a doação de órgãos e de sangue, aborto, cremação, pesquisas com células-tronco, entre outros. “Está na hora dos africanistas discutirem estes assuntos à luz da teologia africana e tomar algumas decisões. Podemos doar órgãos? Esta é uma resposta que precisamos construir ainda”, ressaltou ele.
O culto de Egungun, entidade representativa nos Eguns na cultura africana, surgiu também no vídeo "Atlântico Negro: Na Rota dos Orixás", de Renato Barbieri, apresentado e debatido no evento. O documentário mostra o continuum africano no Brasil, preservado fundamentalmente pelos terreiros em todo o Brasil. As discussões destacaram a importância dos africanos na formação e desenvolvimento da sociedade e da economia brasileira. “Sempre se fala da cultura, da música, da dança, do futebol, mas o negro trouxe muito mais do que isso. Foi ele quem trouxe a tecnologia e a experiência na criação do gado extensivo, na agricultura, na mineralogia. Eles eram experts em várias áreas estratégicas para o Brasil e por isso que foram trazidos para cá, não os europeus, como dizem os livros”, denunciou Gilmar de Ogun, omorixá e membro do Egbé Òrun-Àiyé.
Café Cultural - roda de samba!
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*A reprodução é autorizada desde que citada a fonte.
quinta-feira, 20 de novembro de 2008
Marco Histórico
domingo, 9 de novembro de 2008
Seminário Estadual de Estudos das Religiões de Matriz Africana
Data: 22 de novembro de 2008
Horário: das 9h às 20h30
Local: Sindisprev/RS - Travessa Francisco Leonardo Truda, 40, 12º andar, Centro de Porto Alegre
Inscrições e informações: (51) 3354.7119 / 9177.1712 ou email egbeorunaiye@yahoo.com.br
Investimento: R$10,00, com obtenção de certificado.
PROGRAMAÇÃO:
9h - Inscrições
9h30min - Toque de tambores
9h50min - Abertura Oficial
Egbé/RS
Sindisprevrs
Mesa Batuque e Saúde
10h - "Os Terreiros como espaço de saúde"
Bàbá Diba de Yemojá
Coordenador Estadual da Rede Nacional de Religiões Afro- Brasileiras e Saúde; Sócio-Fundador do Cedrab, Bàbálórìsá da Comunidade Terreiro Ilé Àse Yemojá Omi Olodó
10h40min - "O terreiro de batuque como espaço de produção de saúde mental"
Míriam Oloriobá Alves
Doutoranda em Psicologia Social pela PUC/RS, omórìsá do Ilé Àse Yemojá Omi Olodo
11h20min - Debate
12h - Almoço.
Mesa Batuque e Educação
14h - "Batuque em sala de aula: perspectivas no relacionamento professor/aluno batuqueiro"
Lúcia Regina Brito Pereira
Doutora em História, Coordenadora do GT Negros, fundadora da ong Maria Mulher - Organização de Mulheres Negras, líder do Grupo Africanidades, Ideologias e Cotidiano do PPGH/PUCRS
14h40min - "Batuque que educa"
Mário Sangó Obafemi da Rosa
Educador popular, presidente do Áfricanamente, omórìsá do Ilé Àse Yemojá Omi Olodo
15h20min - Debate
16h - Café cultural com Áfricanamente
17h - Vídeo: "Atlântico Negro: Na Rota dos Orixás", documentário que mostra as afinidades culturais existentes dos dois lados do Atlântico, entre Brasil e África. Mostra quais foram as principais rotas do tráfico negreiro e destaca as grandes contribuições que os africanos incorporaram à cultura brasileira em seu período de formação. Aborda também o tema do retorno à África, empreendido por cerca de dez mil ex-escravizados que da Bahia e de Pernambuco voltaram para terras africanas em diferentes momentos do século XIX. Vários descendentes de escravizados brasileiros foram entrevistados nesse país africano, onde sobrevivem elementos da cultura brasileira do tempo do Império: na alimentação, na música, no vestuário, na religiosidade. O filme também aborda o tema das origens das religiões afro-brasileiras, trazendo para o espectador imagens surpreendentes de rituais filmados em Keto, Abomei e Uidá. O filme foi elogiado no 31º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e participou de eventos como o Dia Nacional da Consciência Negra. Foi selecionado e exibido no Festival Internacional de Cinema de Cannes, em 1999.
17h45min - Debate
Conferência Cosmovisão Africana
18h30min - "O Pós-Morte nas Religiões de Matriz Africana"
Jayro Olorode Ogiyan Kalafor Pereira
Mestre em Teologia pelo IEPG da EST, Licenciado em Ciências Religiosas pela PUCPR; editor da Revista Africaxé, Coordenador Nacional do Egbé Òrun Àiyé e do CENARAB, omórìsá
20h30min - Entrega dos certificados
21h - Encerramento
Realização
Apoio
quinta-feira, 16 de outubro de 2008
terça-feira, 14 de outubro de 2008
Cântico a Olódùmarè
Olójó Oní mo júbà o
Olójó Oní mo júbà o
E jé mi jisè
E jé mi jisè
Ti Olódúmarè rán mi
Bi elémi kò gbà á
Bi elémi kò gbà á
Olódùmarè àse
Olódùmarè àse
Olódùmarè a rán rere
Sí i o
Tradução
Senhor deste dia, meus respeitos, eu o saúdo
Senhor deste dia, meus respeitos, eu o saúdo
Deixe-me cumprir a missão
Deixe-me cumprir a missão
Da qual Olódùmarè me encarregou
Da qual Olódùmarè me encarregou
Se o Senhor desta vida não o impedir
Olódùmarè nos dê a sua aprovação
Olódùmarè nos dê a sua aprovação
Possa Olódùmarè mandar sua bênção
Para o nosso trabalho
Pùpó àsé gbogbo!
quinta-feira, 2 de outubro de 2008
Crônica pela Mudança!!!!
segunda-feira, 29 de setembro de 2008
Religião
As religiões de matriz africana estão alcançando patamares nunca antes alcançados junto às universidades nacionais e internacionais. No passado a religião era vista como um objeto a ser estudado pelos pesquisadores burgueses brancos para conquista de seus títulos em mestrados e doutorados, sempre vendo a religião como algo exótico a ser observado como num zoológico. Geralmente imbuídos por sentimentos eurocêntricos, esses pesquisadores classificavam as religiões de matriz africana como meras seitas anímicas praticadas por negros apedeutas com religiosidade limitada.
Hoje, contrariando todas as estatísticas, vemos nossos irmãos dentro da academia, dentro das universidades, fazendo pesquisas e aparecendo como produtores intelectuais mostrando o Batuque, o Candomblé e a Umbanda com uma visão “desde dentro” como trata Juana dos Santos em seu livro “Os nagô e a morte” (Vozes, 2002). E são muitos os pesquisadores sérios que produzem um material que exprime o pensar da religião africanista a partir de princípios interiorizados na prática do saber acumulado por nossos ancestrais. São Geógrafos, Historiadores, Sociólogos, Psicólogos, Jornalistas, Assistentes Sociais, Biólogos, Pedagogos, Antropólogos, Etnólogos, todos povo do axé. No entanto, o que mais precisamos são de Teólogos, sobretudo aqueles que pensam uma Teologia Afro-Brasileira.
No conceito cristão, Teologia seria a ciência cujo objeto de estudo é o deus bíblico. Como não é possível estudar diretamente um objeto que não vemos e não tocamos, então estuda-se esse deus a partir da sua revelação que seria a própria bíblia. Outro conceito é o de Platão que definiu Teologia como sendo um estudo da natureza divina de forma racional.
Mas e o que seria Teologia Afro-Brasileira?
“É o estudo teórico da concepção de transcendentalidade na cosmovisão africana e sua práxis antropotheogônica afro-brasileira na sua dimensão intercultural”. Essa é a definição do Prof. Jayro Olorodê Ogiyan Kalafor Pereira, baiano da Ilha de Itaparica, iniciado para Oxogiyan no Ilê Axé Opô Afonjá, hoje ligado ao Ilê Alaketu; mestre em Teologia, especialista em Culturas Africanas e Relações Interétnicas na Educação Nacional, bacharel em Filosofia e licenciado em Ciências Religiosas. Ele é o único teólogo acadêmico a desenvolver uma Teologia genuinamente afro-brasileira.
Há cerca de quinze anos o Prof. Jayro fundou o Egbé Òrun Àiyé, uma associação para estudos da Teologia e da Filosofia das culturas negras, com o objetivo de proporcionar aos religiosos de matriz africana uma compreensão melhor sobre suas práticas e vivências. Em meados de 2003, após ter atuado em outros estados como Rio de Janeiro, Paraná e Santa Catarina, o Egbé chegou ao Rio Grande do Sul onde foi aclamado e recriado como seccional estadual. Depois de um período de amortecimento, o Egbé/RS retorna revigorado e à toda prova.
A religião de matriz africana, com o passar do tempo, perdeu muito de seus componentes teóricos. Os africanistas faziam rituais e liturgias por pura repetição sem ter o conhecimento dos porquês de suas realizações. Muitos dos antigos sacerdotes ao serem questionados sobre o sentido de se fazer um ritual, geralmente respondiam de forma evasiva, afirmando serem segredos ou que ainda não estava na hora de aprender o que na realidade nunca ensinavam. Ou pior! Por não saber, e para evitar a debandada de filhos, inventavam teorias sem pé nem cabeça, ou se apropriavam de teorias de outras confissões religiosas, muitas delas sem nada a ver com o que praticamos.
O Egbé vem nesse sentido preencher essa lacuna.
Entendemos que o batuque é uma religião negra, de origem africana, adaptada ao Rio Grande do Sul. Entender a religião desse modo, nos faz querer fortalecer essa identidade. E a fortalecemos se os complexos teóricos forem pensados a partir da cosmovisão africana.
Algumas pessoas, no entanto, receosas que são, desacreditam o nosso trabalho afirmando que queremos degradar o batuque ou que tentamos “candomblenizá-lo” ou ainda que estudando Teologia e Filosofia criaremos outra religião.
Mas quanta bobagem dita por quem nem sequer nos dá a honra de visitar-nos em nossos encontros e eventos.
Nossa intenção não é diminuir os poderes dos Pais e Mães-de-santo sobre seus filhos, mas garantir a todos os vivenciadores do batuque um conhecimento mais aprimorado sobre aquilo que eles mesmos praticam. O estudo da Teologia afro-brasileira só trará subsídios positivos, agregando ao batuque componentes teóricos que lhe foram negados historicamente e que podem até mesmo nos servir efetivamente no enfrentamento aos ataques de neopentecostais.
Púpò àse gbogbo!
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Sugestão de leitura
“Os nagô e a morte: pàde, asèsè e o culto égun na Bahia” de Juana Elbein dos Santos.
Tese de doutorado em etnologia defendida em Sourbonne, França. É o mais profundo estudo feito sobre a natureza dos Orixás e dos Eguns. Base eloqüênte para o estudo teológico afro-brasileiro.
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* Artigo publicado no Jornal Bom Axé. Edição 37. Bellgrado. Agosto/2008. Pág. 24
quarta-feira, 24 de setembro de 2008
Governo Religioso
por Pai Léo de Oxala
Toy Vodunon do Kwe Jeje-Nagô - Ilê Oxalá Segbo, Coordenador de Projetos do Egbé Òrun Àiyé- RS.
Com o advento da compra do Asè, pagando uma pequena fortuna se tornou comum o dito governo, indivíduos alegam que seu Orixá pediu governo ou que já ganhou ($$$) o axé de governo do Pai ou Mãe de Santo, bem mas há mais coisas por de trás destas justificativas, o governo para esses indivíduos significa, ter o absoluto controle sobre tudo que acontece em seu Ile e seus atos como Religioso. Mas por que acontece isso? Por que ninguém mais quer dar satisfação de seus atos a ninguém, todos querem ser Pais e Mães de santo e ter o seu Governo e com isso autonomia total em seu Ile, ninguém quer ser filho de santo e passar por anos de aprendizado como deveria ser, antes de se aprontar e ter o titulo de Babablorixá ou Yalorixá, muitos esquecem que ninguém se faz sozinho e que ser um sacerdote significa aprendizado constante, aprendizado esse que o Baba ou Yia devem passar, o individuo que não passou pelo tempo de aprendizado, certamente não tem o devido conhecimento e ai estão... muitos Babas e Yias sem o preparo necessário e fica muito claro isso pois estão sempre na “balança” hora se destacam, hora estão na lama, a falta da bagagem Religiosa, de tempo de aprendizado no Ile do Baba ou Yia , traça um caminho em suas vidas que de forma alguma é linear, muitos desses compraram seu Asé em aprontes Express. Antigamente era diferente e pouco se ouvia falar em “Governo” , só obtinha a liberdade parcial quem passou anos ao lado do seu Baba no aprendizado religioso e realmente se destacou como Religioso pela sua fé, dedicação, merecimento e seu conhecimento adquirido e mesmo assim o Baba acompanhava as obrigações desse filho, o filho ia fazer uma obrigação para seu Orixá e o seu Baba estava ao lado, as vezes o Filho já tinha a liberdade de se borir sozinho, mas sob os olhos de seu baba, portanto não tinha autonomia total, tinha sim que prestar contas ao seu Baba de seus atos e hoje esta servindo mais para o Filho dispensar o Pai de santo e não ter que dar satisfação a ninguém de seus atos, acredito que assim perde-se a noção de família religiosa, que é a base da Religião dos Orixás. Pai ou Mãe de santo são para toda vida, e não somente enquanto vc esta com sua obrigação no Ilê deles, por isso que não vemos mais hoje a figura de uma pessoa antiga nos batuques, conhecemos os Pais e Mãe de santo de hoje só que ninguém sabe de onde eles vem, qual a raiz deles, em que bacia foram feitos, enfim e nem eles fazem questão de dizer , pois todos nós sabemos em que circunstancias, eles foram feitos, por isso sempre desconfio do tal governo. A importância da figura do Pai ou Mãe de santo no dia a dia e na porta do Peji nos dias de obrigações, caiu em desuso e com isso se criou o cargo de Padrinho da casa e renegam o seu asé de feitura. A importância da ancestralidade é fundamental, claro que à alguns casos de desacertos entre filhos e Pais, filhos esses que foram bem feitos e que tem bagagem Religiosa e mesmos afastados do Asé de origem continuam rezando sobre a mesma cartilha que aprenderam, não podemos generalizar de forma alguma, mas mesmo assim não se pode renegar as raízes Religiosas. Governo só se obtém após a morte do Baba ou Yia e se tiver orumalé completo com os devidos Axés de Obè e Ifa e se o individuo é cavalo de santo o Axé de fala.
"Quando não souberes para onde ir, olha para trás e saiba pelo menos de onde vens."
"o sangue e a ancestralidade não há como negar, não há como recuar, não há como recusar , nos eleva e identifica"
DA ÉTICA (Por Iyalorixá Fernanda de Oxum Doko)
Cada dia ouvimos mais e mais relatos alarmantes, o que nos levam a pensar se existiria uma solução para a enorme crise em que se encontram as relações entre o homem e o sagrado, entre os homens entre si e entre esses mesmos homens quando o que têm em comum é o culto ao sagrado.
Estamos vivendo um momento em que o culto aos Orixás acabou se tornando objeto de comércio e disputas acirradas. Não há mais respeito pelo Orixá-Ori de cada ser humano, o que muitos enxergam é o que podem obter com cada cabeça que deite por debaixo de sua faca e acabam deixando de enxergar o Orixá e o ser humano para darem olhos ao lucro e/ou prestígio que cada omorixá (filho de santo) pode trazer para dentro de sua casa.
Estava no Ilê de meu Babalorixá, prestando obrigação à minha Iyá-Ori Oxum Doko e outros 16 Orixás pessoais juntamente com outros irmãos de santo que também cumpriam obrigações a seus Orixás. Dez dias de trabalho com amor, dedicação, fé, responsabilidade perante as divindades e os humanos que ali se encontravam. Chegou o ápice da obrigação, a Festa Grande no sábado. O encerramento de meses de sacrifícios e trabalho árduo, para proporcionar aos meus Orixás, o meu "sagrado orunmalé" o melhor dos melhores. No final da festa me surpreendo com duas de minhas filhas de santo aterrorizadas com um dito "Pai de Santo renomado" que estava no Ilê de meu Babalorixá à caça de filhos de santo, entre esses, omorixás da bandeira de minha Iyá Oxum Doko.
A uma delas dizia este, insistentemente, que seu Orixá-Ori, confirmado há mais de 5 anos, estaria trocado e seu bori mal-feito. A outra, ofereceu-se para ensinar feitiços e ainda ajudá-la a fazê-los e a "segurar" seus efeitos, já que eu, sua Iyalorixá, me negava a ensiná-la a fazer danos e ainda sempre dei ordens para que não os fizesse. Isso deixando de lado o que o mesmo falou sobre os donos da casa, meu Babá e sua esposa, que jamais teria eu coragem de repetir tais palavras e menos ainda torná-las públicas.
Tal fato me causou uma mistura de indignação, raiva, asco e ainda pena! Pena de pessoas que se prestam a esse papel, irem a casa dos outros comerem de sua comida, dançarem para seus Orixás, participarem do momento de celebração de uma grande obrigação religiosa, como é o batuque de 4 pés, e ainda assim, usar dos bastidores para semear a dúvida, a discórdia, a maledicência e, principalmente, o desrespeito às divindades, à cerimônia em si e aos crentes religiosos que estavam ali dedicando seu tempo e suor para proporcionar a essas mesmas visitas um bom axé de prosperidade, alegria e doçura de nossos Orixás.
Minhas filhas com todos os ensinamentos que receberam de como agir em situações religiosas adversas e respeito à hierarquia, já que estava se tratando de uma pessoa mais antiga na religião, se ativeram a ficarem quietas com tal atitude, pois a confiança e o amor aos seus Orixás e sua Bandeira foram superiores à maldade de quem tentou imputar incertezas em suas mentes e corações.
Mas quantos estão realmente preparados para tais atitudes?
E quantos passam por cima de todos os limites de ética-social, respeito, educação, honestidade, boa conduta, seja esta pessoal ou religiosa; com objetivos carregados de egoísmo e vaidade?
Quantos ditos Pais e Mães de Santo estão aí vendendo feituras, axés, governos, e até cabeças? Cabeças sim, pois pagando bem, pode-se escolher o Orixá-Ori, o Ajuntó e ainda a passagem!!!
Porém, tal comércio só existe porque existem pessoas dispostas a pagar para satisfazerem seus desejos pessoais em relação a sociedade batuqueira. Títulos de babalorixás estão à venda como outra mercadoria qualquer, porém, me pergunto diariamente, qual a validade e garantia desses títulos??? Qual será a nocividade dos efeitos colaterais dessa epidemia a médio e longo prazo e o que será de nossa religião se os valores se corrompem e se perdem cada dia mais e mais ao longo do tempo???
Uma conscientização em massa do que realmente representa o culto aos Orixás, suas bases teológicas e filosóficas seria uma das maneiras de tentarmos reverter esse processo. Porém, enfrentamos uma enorme barreira nessa tentativa de difundir os aspectos culturais de nossa religião, pois em uma sociedade em que conhecimento é poder, e a falta deste pela maioria dos fiéis é a garantia da sobrevivência de muitos "Pais e Mães de Santo" e seus Ilês, essa atitude acaba sendo ameaçadora.
Afinal, muitos são os que lucram com essa desordem religiosa atual!
E quem perde é a Religião Africana como um todo!
Bem X Mal (Por Iyalorixá Fernanda de Oxum Doko)
O bem e o mal não são resultado de uma batalha de duas forças cósmicas figuradas, externas e opostas, mas sim da ação do homem sobre a energia irrefreável, criadora e potencializadora por natureza, porém neutra. É apenas força, nem boa e nem má, o seu uso sim, pode ser para fins construtivos ou destrutivos, e isso depende unicamente do direcionamento que nós, seres humanos, damos a ela.
Olódúmarè deu aos homens àse(axé- poder divino criador), e os dons da mente, da palavra e da inteligência. Ao mesmo tempo cabe a casa um de nós, as escolhas do que fazer com nossos próprios poderes.
Uma das leis universais é que, a toda ação corresponde uma reação, seja ela igual ou contrária. Ou seja, quando emanamos axé, levando-se em consideração que axé é a própria força que nos mantém vivos e está em tudo e todos, é emanado de nós a todo e qualquer momento; então, a cada atitude ou falta desta quando necessário, o universo nos responderá, ou nos devolverá esse axé de alguma maneira.
Dada a complexidade de cada ser humano, que é um conjunto de ideais, paixões, valores, vontades, interesses, crenças, as definições de bem/mal variam de sociedade para sociedade, grupo para grupo, pessoa para pessoa.
Em uma sociedade capitalista, em que a maioria das relações são competitivas e condicionais, esses dois conceitos de confundem ainda mais, pois o bem-estar de um(ns) pode ser definitivamente relacionado com o mal-estar de outro(s).
Tanto o bem quanto o mal acabam variando de acordo com as situações particulares e a necessidade individual de cada um de nós.
Fazer com que uma força, um axé seja uma força boa ou má depende de todo o seu contexto de uso e finalidade, e de todo o processo que será desencadeado a partir dela.
Bem e mal nem sempre serão forças opostas, muitas vezes um único elemento pode trazer consigo ambos conceitos, dependendo do ponto de vista do qual é analisado.
Não espera-se a perfeição dos humanos, ao contrário, nenhum ser humano é totalmente bom ou mau! O ideal de perfeição apenas aplica-se a Olódúmarè, o ser supremo, e nem mesmo os Orixás deixam de ter qualidades e defeitos, aspectos positivos e negativos de personalidade e caráter.
Nem assim deixamos de ter responsabilidade por cada um de nossos atos, pensamentos e atitudes, e usar a forças de forma positiva ou negativa sempre será uma escolha de cada um de nós, segundo nossos próprios valores, vontades e crenças.
Pùpó àsé!
Àse (Por Iyalorixá Fernanda de Oxum Doko)
Força mítica do universo; Poder e força vital; Força divina vivificante ou mística; Força mágico-sagrada; Poder místico e potencial presente em tudo o que existe no òrun (mundo espiritual) e àiyé (mundo material), em todas as coisas, sejam elas concretas ou abstratas.
Força geradora e potencializadora, através da qual Olódúmarè, o Ser Supremo, se faz presente em todos os elementos do universo.
A presença de "Deus" para os Yorùbá não é remota, distante; ao oposto, o "sagrado" está impregnado em tudo e todos através do àse (axé), uma "porção" de Olódúmarè, onipresente, onisciente e onipotente. É a síntese de tudo o que existe, o que impulsiona a vida e a matéria, sendo estas produtos e fontes condutoras deste mesmo àse (axé).
São os Òrìsàs (Orixás) divindades emanadas do próprio Olódúmarè, através e com àse (axé), e são considerados como personificações das "qualidades divinas" e assistem ao Ser Supremo nas tarefas do universo, sendo que cada um deles tem seus atributos e seu "papel" no estabelecimento do equilíbrio das relações entre o mundo espiritual e o material (òrun e àiyé), entre homem e natureza, entre a humanidade e "Deus".
Segundo Pierre Verger:
"...os iorubas nunca viram o ase, nem pretendem personificá-lo. Nem podem defini-lo por atributos e características determinadas. Ele envolve todo mistério, todo poder secreto, toda divindade. Nenhuma enumeração consegue exaurir esta idéia infinitamente complexa. Não é um poder definido ou definivél, é o próprio Poder no sentido absoluto, sem epíteto ou determinação de alguma espécie...é o princípio de tudo o que vive, age ou se move. A vida inteira é ase."
Àse (axé) é tudo e mais... é a própria existência. Sem ele nada é possível! É força que evolui, cresce e revigora-se constantemente. Por sua essência, vai além das definições e da completa racionalização para a compreensão humana.
Àse (axé) é eterno... é tudo o que foi, o que é e o que será!
terça-feira, 23 de setembro de 2008
Reafricanização - a responsabilidade está em nós!
Os motivos, estamos cansados de ver todos os dias: desrespeito com a natureza, com os mais velhos, com o processo iniciático, com a história, enfim, o desrespeito com o sagrado.
O conhecimento foi esquecido no tempo, sobrando apenas a desorientação e o desespero. As incógnitas formam buracos na nossa fé. Buscamos cobri-los com qualquer teologia que nos parece lógica. Os enxertos causam estragos maiores ainda. Quando vejo sacerdotes consultando cartas, runas, palma das mãos, bolas de cristal; praticando reike, cirurgia pelo "espaço", terapias holísticas; tomando hóstia e batizando os seus filhos com água benta em nome de Jesus... tenho vontade de chorar. Penso nos profundos ensinamentos dos Odús. Penso em toda a riqueza cultural e sabedoria milenar que nos foi legada e que está sendo desprezada, muitas vezes, por puro interesse comercial.
Mas nós, jovens iniciados, fomos despertados por um conhecimento que ignorávamos. Existe um ditado que diz: "o conhecimento gera responsabilidade". Está na nossa consciência o compromisso de resgatarmos o saber que ficou para trás. Cada um, em seus Ilès, em suas profissões, tem agora o dever de propagar a verdadeira tradição dos Òrisà, Nkices e Voduns.
Nosso trabalho é missionário* e ficará marcado na História se trabalharmos com amor e dedicação.
Os primeiros frutos já estamos colhendo. A fraternidade que se estabeleceu entre nós é prova de que nossos Òrisà estão nos abençoando, e agradeço sinceramente, todos os dias, por isso. Adúpé o!
* no sentido de "missão"
Imagem: R. L. Cairns
Reflexão
Reflexão
O mundo hoje anda em total degradação em aspectos variados, guerras insensatas, desmatamento de florestas, poluições desenfreadas e outras conjunturas que desalinham totalmente o sistema natural da vida e do universo.
A vida coletiva está em total desarmonia com o planeta, destruindo aquilo que sempre a sustentou desde os primórdios dos tempos, o seu anima a sua energia vital. Atualmente, objetivos comuns entre nós seres humanos é a disputa do querer, do saber e adquirir, sem se importar com as conseqüências benéficas ou não a quem quer que atinja. Avançando sobre terras, desbravando espaços, querendo brincar de Deus inventando doenças, trapaceando a morte.
Em épocas atras, nossos ancestrais mencionavam que tudo era harmonia e tudo interagia com o divino, não havia discórdia, disputas, intrigas e o desprezo pela natureza, enfim existia a verdadeira essência da alma humana ligada ao mundo e a cosmos.
Onde se perdeu essa sincronização com Olorum e o universo, o que através dos tempo trouxe tanta ganância no coração dos homens, o porque de tantas guerras, tantos crimes hediondos, o desenfrear consumo de drogas, sexo e a demasia absorção do dinheiro.
Estamos engolfados num oceano que cresce sem limites a escuridão, onde a fé em algo que um dia foi inabalável, inatingível e propulsor de algo tão glorioso que é a vida estão sendo manipulados por pessoas que se dizem chefes de estados, sacerdotes, pastores e outras denominações criadas para mesclar a verdadeira face de alguns supostos seres que se dizem de boa fé.
Olhamos para o lado para o”irmão”, para frente nossos “filhos”, para atras nossos “antepassados” e que seja necessário rezar, idolatrar e lembrar a todos que a vida sempre esteve ligada a Olorum, pois, dele recebemos o sopro da existência o “emi” e a ele devemos benevolência. Cultuar uma religião não é obrigação e sim uma arte divina.
Eduardo de Òsàlá -babalorixá do Ilè Asé Omi Orisá
vice-coordenador do EGBE-RS
SEMINÁRIO AFROBAS
No sábado de 23 de agosto de 2008 o Egbe compareceu no V Seminário das Religiões Afro-Brasileiras. Um evento realizado pela AFROBAS, onde teve palestras de inúmeros sacerdotes como a Vera de Ossanhã, Volter de Ogum e participações de Jorge Verardi e Cleon de Oxalá. Os assuntos variavam entre o limiar das conseqüências do “Batuque” da antiga com o choque da modernidade. Particularmente evidências mostravam que novas idéias, novos horizontes e remontagem de conceitos, estavam devidamente sendo criticados ou sendo mais ameno analisados. Obviamente o EGBE –RS quando tiver mais em evidência sofrerá um arrebate de criticas mas a estrutura esta sendo criada com fortalecimento e além disso estamos comparecendo em eventos e fazendo eventos, interagindo com a sociedade religiosa e cultural.
Isso tudo fez me lembrar um texto escrito por mim em 2006.
O espaço étnico do Brasil é constituído por várias raças provenientes de vários países, conseqüentemente em nossa fisiologia em nossos conceitos de vida e pensamentos há um emaranhado de raízes étnicas.
Somos uma conjunção variada de etnias de formação oriental e ocidental. Obviamente a soma de tudo isso ocasiona conflitos numa religião de origem milenar, como a nossa o "Batuque" donde vindo da mãe África, espaço que respiravam Orisás, Inkisses e Voduns, onde africanos só tinham suas divindades para adorar, para temer e agradar. O respirar a religião era o conviver, mas a evolução fez o divino atravessar o oceano. Chegando ao Brasil vemos como tudo mudou, convergências de opiniões de como proceder as liturgias em cerimônias é algo corriqueiro, pois até nisso criou-se o livre arbítrio. Cabe o individuo seguir, e saber julgar de forma correta onde exista religião regida com seriedade por um sacerdote de asé existencial ou então cair na malha do destino e se entregar uma casa de “um simples cidadão brasileiro manipulador de energias".
Pùpo Asé!
Eduardo deÒsàla- babalorixá do Ilè Asé Omi Òrìsá
Vice-coordenador EGBE-RS.
Òrisà: só respeita quem tem
Crônica de Vanessa Efunpàdé t’Iyemojá (Jornalista, Coordenadora do Egbé/RS, Omorìsà do Ilè Ogun Onirè e Oyá Niké)
Dizem que as filhas de Iyemojá são rebeldes e eu penso que todo o senso comum tem um fundo de verdade, embora seja filha deste maravilhoso Òrisà! Pois bem, não sei se era por causa da adolescência, mas lá pelos meus 14, 15 anos, eu vivia batendo com as portas lá de casa. Neste caso era por causa da minha mãe, que não me deixava sair TODOS os finais de semana para as baladas, como eu queria.
Um dia eu estava na escola, cabisbaixa, pensando em como a minha mãe era chata, quando uma colega se aproximou perguntando o que eu tinha. “’Tô de cara’ com a minha mãe. Ela é uma chata! Pega no meu pé o tempo todo. Não me deixa sair pras baladas, quer que eu ajude ela o dia todo com a casa, quer que eu diga aonde vou, com quem, que horas volto... é um saco! Não agüento mais!!!”, desabafei. A resposta da minha colega não podia ter me surpreendido mais. Eu, que esperava total apoio e reforço na minha reivindicação, ouvi o seguinte: “Guria, tu nem sabe como eu te invejo. Eu daria tudo para ter uma mãe como a tua. Pelo menos ela mostra que te ama e se preocupa contigo. A minha não quer saber se estou viva ou morta. Se eu saio e não volto pra casa, pra ela tanto faz. Eu não passo de uma sombra. Ninguém percebe minha ausência lá em casa...”. A partir deste dia, minha relação com minha mãe mudou e aprendi uma grande lição: nossos pais nos repreendem porque nos amam e demonstram isto através da proteção.
Contei esta história, um fato real na minha vida, para explicar que, da mesma forma como nos tratam nossos pais consangüíneos ou adotivos, aqui no Ara Òrun, os Òrisàs agem em relação aos seus filhos. Querem ver?
Desde pequena, sempre fui ousada e atrevida, e os corretivos que levava eram proporcionais às minhas travessuras! Uma vez, lá pelos meus oito anos, fiz um “teste”. Queria saber se era verdade essa história de que as pessoas (elegùn) não sabem que manifestam seu Òrisà. Então, fiz uma pergunta a uma irmã minha sobre um fato que ela não presenciou porque estava “ocupada”. Queria saber se ela ia “lembrar” de ter testemunhado o ocorrido. Ela, obviamente, ficou confusa e não soube me responder. E eu, feliz com o sucesso da minha “pesquisa” – que certamente já tinha realizado com outras “vítimas”. Pode ter sido coincidência, mas no dia seguinte acordei com a língua tão inchada que só conseguia beber água! Realizei outros “testes” ao longo da infância e adolescência, sempre seguidos de um grande “laço”.
Porém, eu não entendia, e manifestava a minha inconformidade em relação a outras pessoas, que desrespeitavam violentamente os Òrisàs e... nada lhes acontecia. Por que os Òrisàs eram imperdoáveis comigo e com os outros eram indiferentes?
Hoje em dia, cada vez mais vemos religiosos de matriz africana fazendo barbáries em nome da Religião, afrontando diretamente as divindades, e me parece que há um sentimento coletivo de “impunidade”. Não acredito que haja uma relação maniqueísta, em que os Òrisàs apliquem castigos, como eu imaginava quando era criança, mas penso que é o resultado dos nossos atos que se materializam em “sanções”, por meio da ação dos Òrisàs.
Mas uma coisa a maturidade me ensinou: assim como minha colega de escola, os religiosos deveriam se preocupar muito se estão cometendo interdições e nenhuma conseqüência surge disto. Esta indiferença do Òrisà em relação ao seu filho tem uma causa e, principalmente, uma conseqüência. Eu, particularmente, quero continuar levando meus corretivos, e agradecendo a Olodumare por saber que meus Òrisàs estão presentes na minha vida, me educando, me corrigindo, me protegendo.
Foto reproduzida do livro Mitologia dos Orixás, de Reginaldo Prandi.palestra do prof Norton.
Palestra do prof. Norton
segunda-feira, 11 de agosto de 2008
sábado, 9 de agosto de 2008
Teologia da resistência
Por Vanessa Martins. Jornalista, Teóloga, Coordenadora de Mídia do Egbé/RS.
Em palestra realizada na noite de ontem, 23 de julho, em Porto Alegre, o teólogo e filósofo Jayro Olorode Ogyán Kalafor defendeu a formação de teólogos das religiões de matriz africana como uma das formas de resistência a ações de intolerância religiosa e racismo, que assolam estas populações desde o início do processo de escravidão no Brasil. "Desde 1500, diversas teologias foram extremamente danosas para os africanos e afro-descendentes no nosso país", diz ele.
Olorode também afirmou que a Teologia não é uma prerrogativa da "revelação" ou da Igreja Católica, ou seja, todos os que pensam sobre o sagrado, em qualquer cultura, estão fazendo teologia. A primeira definição de teologia, segundo ele, é "fazer poemas sobre o sagrado", o que os africanos já faziam muito antes inclusive do surgimento da Filosofia Grega, tida como pioneira. "Não há nada de original na Filosofia Grega, uma vez que os "pais" da Filosofia tiveram mestres africanos, fato que foi omitido da História oficial. Em se tratando de culturas africanas, Filosofia e Teologia estão indissociadas, já que o "sagrado" é intrínseco a todos os aspectos da vida, conforme a visão de mundo africana. "É o que chamamos de Biomiticidade ou Antropoteogonia, ou seja, o divino está dentro de nós, e nós fazemos parte dele, assim como as plantas, os rios, as pedras, e tudo mais que compõe o Cosmos".
O estudioso também denunciou o que chama de "demonização da religião afro-brasileira", através da associação entre Exu e o Diabo. "O Orixá Exu ou Bará, como é chamado no Rio Grande do Sul, pode ser comparado a Pneuma, Ruah e Espírito Santo. Teologicamente não há diferença entre eles", disse.
Atualmente, a religião africana no Brasil sofre com os ataques das Igrejas Neopentecostais, que vão desde a violência física, através de agressões e invasões de terreiros, até as formas mais sutis de intolerância, como a proposição e aprovação de leis que dificultam o culto aos Orixás, Inkices e Voduns. Um exemplo recente disso, no Estado gaúcho, é a aprovação de uma lei que proíbe o despacho de animais em qualquer espaço da cidade de Porto Alegre. O projeto, apresentado por um vereador evangélico e aprovado pelo prefeito da capital em exercício, também evangélico, está suspenso devido a uma medida judicial em caráter liminar, graças a ação política de religiosos africanistas organizados.
sexta-feira, 18 de julho de 2008
TEOLOGIA E FILOSOFIA DE MATRIZ AFRICANA
terça-feira, 24 de junho de 2008
Batuque & Neoliberalismo
Hendrix de Orumiláia é Omòrìsà, Coordenador do Egbé Òrun Àiyé/RS, Professor de História, integrante do GT NEGROS e do CEDRAB e militante do Movimento Negro e contra a intolerância religiosa.
Àgo ye égbon!
O que mais se critica atualmente são os babalorixás e yalorixás que cobram por seus serviços. É de comum acordo entre os praticantes da religião africana, que seus sacerdotes não deveriam, cobrar uma consulta ou trabalho feito para alguém. Entretanto, quase não se tem notícia dos que não cobram.
Conversando com colegas do curso de História, na FAPA, ouço críticas parecidas e até controversas. Certa vez um colega contestou a cobrança, afinal a religião não era para ser comunitária? Noutro dia outra colega, demonstrando intransigência, me perguntou como pode uma pessoa pobre ajudar alguém, se não consegue nem mesmo ajudar a si própria? Só que pouco antes disso ela afirmava que “um pai-de-santo que cobra por seus serviços não merece credibilidade.” Em seguida ela disparou: são todos charlatães! Indagada sobre a generalização, ela corrige: “... uns 80 porcento são!”
Afinal um sacerdote deve ou não viver da religião? A resposta é sim! O sacerdócio é uma profissão como qualquer outra. Os padres vivem da igreja, assim como os pastores, rabinos e gurus. Não há argumentos convincentes para o não exercício do sacerdócio como uma forma de ganhar a vida.
A caridade nunca fez parte da ideologia dos sacerdotes africanos. A noção de cobrança e pagamento sempre existiu no fundamento da religião. A diferença está na espécie de pagamento. Os súditos iorubás sempre pagaram tributos ao seu rei. Este, por sua vez, devolvia esses tributos em forma de grandes banquetes públicos em homenagem aos orixás. Exatamente como fazemos hoje nas festas de batuque.
O sacerdote africanista representa, em Porto Alegre, a aglutinação desses dois cargos africanos: o sacerdote e o rei. Como sacerdote ele empregará os conhecimentos religiosos que possui na ajuda às pessoas. Como rei ele devolverá os “tributos” cobrados por esses serviços em forma de siré aos orixás.
O princípio espírita de caridade foi introduzido no pensamento de babalorixás e yalorixás através de seu envolvimento com a umbanda. Hoje contemplamos sacerdotes que praticam tanto o africanismo quanto a umbanda em seus terreiros, fazendo uma miscelânea de dogmas e conceitos que acabam por confundi-lo e aos seus seguidores.
O neoliberalismo é a ideologia que justifica e defende os princípios do capitalismo, baseado na propriedade privada, na liberdade de empresa, cujo objetivo fundamental é o lucro individual, constituindo-se em expressão máxima do individualismo. Essa doutrina foi introduzida no Brasil a partir do governo Collor e ganhou força no governo FHC. Os sacerdotes de hoje, inseridos nesse contexto econômico, buscam o que qualquer brasileiro tem como meta: o enriquecimento.
A busca pelo acúmulo de capital ou lucro é comum na sociedade brasileira, mas quando se trata de pais ou mães-de-santo a discussão se eleva às dimensões filosóficas. Ou seja, “todo o mundo pode ganhar dinheiro com o que faz, exceto os babalorixás e yalorixás”.
Vamos refletir um pouco: um dos conceitos básicos capitalistas é que a pessoa vende sua força de trabalho para alguém que paga por esse serviço. Se inserirmos esse conceito nas religiões africanas, verificamos que o sacerdote é quem vende sua força de trabalho e o cliente é o contratante que paga por esse serviço. Cada um sabe o valor que tem e cobra o que acha justo pelo seu trabalho. Da mesma forma o cliente pagará o que achar justo de acordo com aquilo que ele procura.
O sacerdote africanista não tem que ser caridoso, na acepção usual da palavra. O que se faz necessário nos dias de hoje é uma consciência social. Ele deve participar ativamente da promoção de uma sociedade igualitária, onde o princípio da coletividade e da verdadeira democracia seja a pauta. Deve se engajar na luta contra o racismo, a intolerância religiosa, a segregação, questões tão evidentes nas sociedades cujo sistema político e econômico é o neoliberalismo.
Púpò àse gbogbo!
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* Artigo publicado no Jornal Aruanda. Edição 0A. Enebe Editora Ltda. Outubro/2005. Pág. 02
segunda-feira, 19 de maio de 2008
O PODER E O FEMININO NA TRADIÇÃO IORUBÁ
A priori, a conjuntiva o poder e o feminino já coloca em si um desafio: trata-se de duas generalizações. Por outro lado, tratar o poder e o feminino só tem sentido quando se articulam as temáticas a uma totalidade que lhes dá significado; isto é, o sentido do poder feminino depende do uso que dele é feito, em que espaço e com que significante se desenvolve no contexto da memória coletiva de um determinado grupo.
Falar sobre a temática da tradição cultural iorubá é trazer à tona a memória ancestral de um povo, mas é também, no tempo presente, andar na contramão da ideologia dominante a serviço dos interesses históricos das elites – dos homens, ricos e brancos. Afinal, como alerta Ianni (1987: 110-111), é conveniente que os negros não saibam como são, como vivem e de que forma participam da economia e da cultura na sociedade atual.
Na sociedade brasileira contemporânea, as evidências empíricas mostram que seres humanos masculinos e femininos não ocupam o mesmo lugar na sociedade.
Os indivíduos são definidos, em termos de lugar/imagem – com sua respectiva distribuição de poder –, com base nas condições de pertença de classe, étnico-racial, de gênero, cultura, religião e outros quesitos, que dão conteúdo e significado à sua existência social. A distribuição de poder decorrente da interconexão desses quesitos modela os seres, determina modos de ser e pensar, institui uma geografia social. Esta cartografia está ancorada, por sua vez, em desigualdades construídas historicamente através de representações culturais. Assim, a geografia do poder institui formas de simbolizar os seres e todas as coisas do mundo, bem como também determina práticas sociais. Ao mesmo tempo, essas práticas e formas de pensar/sentir o mundo produzem efeitos nessa complexa teia de poder na estrutura da sociedade. Em relação à imagem e ao papel do feminino e do poder feminino na sociedade, os diferentes contextos sócio-culturais vêm fornecendo distintos elementos, através dos tempos; elementos esses, fundantes do processo de formação de identidades sociais e da própria memória coletiva.
Um desses contextos de elementos fundantes no processo de construção de identidades, em termos dos valores que informam o lugar do feminino nas relações de poder, é a tradição iorubá, recriada nos territórios das comunidades de terreiro no Brasil.
Como alerta Sodré (1999:14), “nenhum valor é neutro, pois espelha as convicções e as crenças de um sistema particular”. Dessa forma, as referências do feminino na tradição iorubá têm uma significação estabelecida, que atribui valor e padrões de conduta.
Como este processo é inacabado, está em constante construção e recriação, ao mesmo tempo em que estabelece conexões com as “referências de fora” e “os de fora” das comunidades de terreiro – os Ilês (casas de santo, candomblés, roças, etc).
A geografia dos terreiros expressa, pois, uma ocupação sócio-política, uma vez que os Ilês são casas religiosas, mas também casas de moradia, de acolhimento, assim como de prestação de serviços. Aí, as relações de parentesco – consangüíneo e religioso –, articuladas às relações interétnicas e de classe, modelam e regulam motivações de relações, não só religiosas, mas afetivas, econômicas e ético-políticas. Enfim, gestam sociabilidades.
Através da repetição da oralidade e de práticas vivas que habitam a memória das mulheres do povo-de-santo, as várias expressões do exercício do poder feminino hoje ressignificadas nos territórios dos Ilês constituem elos entre o presente e o passado, elos entre o mundo contemporâneo real e a transcendência.
Os terreiros de tradição iorubá podem ser considerados territórios contraditórios, mas tendencialmente plurais, democráticos, dinâmicos, que articulam tradição e contemporaneidade, norma/interdição e liberdade.
Acima de tudo, trata-se de espaços de poder atravessados por significados emblemáticos de identificação e de sentimento de lealdade, inclusão (de todos os excluídos), pertencimento, com possibilidade real de reafirmação da negritude. Assim sendo, pode-se inferir que a comunidade de terreiro é um território potencialmente democrático. Exatamente porque é um acolhimento, possibilita a incorporação do outro, do excluído, do diferente, do discriminado: o pobre, o desempregado/subempregado, a criança, o homossexual, o negro, a mulher. Sendo um locus de afirmação da negritude, incorpora também o branco. Logo, os Ilês são territórios com vocação democrática; espaços plurais que acolhem, não sem tensões e conflitos, diferentes sujeitos sociais: negros/não-negros, homens/mulheres/crianças, indivíduos de diferentes orientações sexuais e pertencentes a distintas frações de classe, inclusive muitos discriminados que não teriam lugar em outras práticas religiosas. No candomblé, os segmentos subordinados da sociedade experimentam a possibilidade de ascensão social, e de desenvolvimento de uma nova sociabilidade, metamorfoseando seus lugares de desvantagem social em posicionalidades de prestígio, geralmente ligadas à hierarquia religiosa. Aí as mulheres, inclusive as negras, ocupam altos cargos, diferentemente do que se verifica nas demais religiões.
Além disso, predominantemente, sobretudo nas casas tradicionais brasileiras, a organização sócio-religiosa nesses espaços se estrutura a partir da lógica matrilinear, sendo a figura mais importante na hierarquia religiosa a mãe-de-santo ou iyalorixá (iyá = mãe). Nesse sentido, um fato importante a observar refere-se à possibilidade de a maternagem ser exercida nessa tradição, não necessariamente atrelada à vinculação biológica. Chama atenção o fato de que, até nos dias atuais, qualquer pessoa do gênero feminino possa desempenhar, na comunidade de terreiro, tarefas relativas ao cuidado com as gerações imaturas – dar banho, colocar para dormir, brincar, passar oralmente ensinamentos (de caráter religioso ou não), ensinar a cantar e dançar, dar comida e até amamentar – ainda que não exista vínculo consangüíneo. Ou seja, nesse território o ato de maternar é generizado, mas não biologizado. Assim, o maternar é um processo sócio-cultural e político de caráter eminentemente coletivo, concebido aqui como maternidade extensiva. Assinale-se, ainda, que o mesmo processo pode ocorrer, embora em menor escala, no caso da paternagem.
A historiografia das primeiras casas-de-santo no Brasil mostra que foi a mulher de tradição iorubá que lançou a semente, germinou e pariu a reinvenção da religiosidade africana em continente brasileiro, possibilitando a criação do candomblé. Esse protagonismo se perpetuou através da chefia espiritual das Casas e da sua presença real em toda a hierarquia religiosa. As primeiras dirigentes viabilizaram a possibilidade de nos Ilês se desenvolverem laços afetivos, bem como de solidariedade econômico-política e étnica, além de ali fornecerem à população afro-descendente em geral a oportunidade de um espaço de luta contra a escravidão e de busca de solução para diferentes problemas. Nesse sentido, esses territórios negros podem ser considerados verdadeiros quilombos, espaços de preservação do capital simbólico da africanidade. A força política dessas sacerdotisas e dos seus terreiros assegurou no Estado Novo o reconhecimento do direito ao culto, bem como levou órgãos do Patrimônio Histórico Nacional, anos mais tarde, a reconhecer sua importância e a tombar várias Casas, como a Casa Branca do Engenho, o Ilê Axé Opô Afonjá e o Terreiro do Gantois, na Bahia, dentre outros. Mas essa força política tem remotas raízes, como demonstra Silveira:
Na organização dos Reinos fons e nagô-iorubá, as mulheres desempenharam um papel ativo, eram elas que administravam o palácio real, assumindo os postos de comando mais importantes, além de fiscalizarem o funcionamento do Estado. (Silveira, 2000:88).
No âmbito do Estado africano, os interesses das mulheres, em especial das mulheres comerciantes, eram representados politicamente pela figura da Iyalodê .
Nas sociedades ocidentais, ancoradas no cartesianismo binário, na lógica dual, bipolar, o feminino é representado por oposições simples, ligadas ao par bem/mal: santa-pura-esposa-mãe versus puta-impura-devassa-dissimulada, isto é, a negação da representação esposa/mãe. Na cosmogonia ocidental, de inspiração judaico-cristã, as referências são as representações ligadas às figuras de Eva e Maria, portadoras de atributos reforçadores da heteronomia, da subalternidade e do controle sexual sobre as mulheres. Aí, o corpo é tratado como impuro e de forma cindida, ou seja, apartado da dimensão ética e espiritual. Na cosmogonia iorubá, as versões do feminino, plasmadas no discurso do mito, estão referidas ao poder das Iyagbás – Oxum, Oiá, Iemanjá, Nanã, Obá, Euá – e das Iyá mi – as grandes mães ancestrais, senhoras dos pássaros da noite, cultuadas pela sociedade feminina secreta Geledé. Nessa visão, o corpo é sacralizado, templo; corpo instituinte do poder transcendental, que inscreve a subjetividade no mundo real. Assim, o cuidado com o corpo está, portanto, diretamente ligado ao cuidado com a dimensão espiritual. O exercício da sexualidade, em qualquer orientação, não é analisado de forma moralista/conservadora, mas como celebração de vida e manifestação de força vital (axé). Como demonstrou Landes (1967), não há restrições quanto às escolhas e condutas sexuais. A análise do mito da cosmogênese ajuda a lançar luzes sobre o complexo valorativo basilar da tradiçao iorubá: a idéia de totalidade, complementariedade e interdependência. Obatalá (princípio masculino) e Odudua (princípio feminino) aparecem no mito da criação da existência em uma união complementar, representados por uma cabaça, onde a parte superior representa o masculino e a inferior o feminino, esta última tendo a tarefa de impulsionar a continuidade da existência. Nesse sentido, o poder feminino se expressa na sua capacidade de dinamização e expansão do arsenal de valores e significados contidos nas práticas sociais cotidianamente vividas na religiosidade.
A história das mulheres negras no continente africano põe em relevo seu protagonismo na economia de trocas de mercadorias, sendo sua presença maciça nos mercados. Ainda hoje, sobretudo as mulheres de pertença étnica iorubá, exercem atividades sócio-ocupacionais em espaços coletivos ligados ao comércio de tecidos e roupas ou de alimentos, ou ainda, montam pequenas vendas de legumes, verduras, frutas e iguarias nos tabuleiros. Vale ressaltar, como também destaca Bernardo (2002:28; 2004:81), que a renda decorrente destas atividades não se caracteriza como complementar à do cônjuge, uma vez que elas compram os produtos provenientes da colheita do marido, os vendem, restando a elas o lucro. Ou seja, historicamente, as mulheres negras, antes de trazidas à força para as terras brasileiras, já tinham um espaço sócio-econômico reconhecido enquanto comerciantes e negociadoras (Verger, 1985: 138).
A vivência desta experiência lhes conferiu saberes na esfera da negociação e da barganha, atributos que lhes foram fundamentais enquanto estratégias de sobrevivência após a diáspora, no âmbito da luta pela sobrevivência para se manterem vivas no contexto da dominação escravocrata e na luta pela manutenção das tradições. Como o comércio é uma atividade inserida no contexto e da comunicação, ali vivenciaram vários tipos de troca: de mercadorias (bens materiais), mas também de informações, inclusive de elementos culturais de outras etnias (bens simbólicos, espirituais). Através do trabalho no mercado, as mulheres se lançavam na arena pública, construindo-se e reconstruindo-se como sujeitos políticos, dotados de liberdade e autonomia. Esse traço da tradição iorubá explica, em grande parte, o fato de as mulheres negras terem sido, no Brasil, as primeiras a ingressar no mercado de trabalho. Após a abolição oficial da escravidão, quando as mulheres brancas encontravam-se aprisionadas no espaço da domesticidade, era significativa a presença de mulheres negras ocupando a cena pública, vendendo nos tabuleiros – eram as famosas quituteiras, negras de ganho que até hoje compõem a geografia humana e econômica de algumas cidades, como Salvador.
O poder feminino exercido na negociação realizada durante as atividades no comércio rendeu às mulheres a capacidade para enfrentar a dominação com malícia e negociação. Ao longo do processo escravocrata, apenas quando se esgotavam as possibilidades de negociação, as mulheres (e também os homens) exerciam o poder com base no confronto direto, alternativa expressa nas fugas, rebeliões e até na eliminação física dos opressores (Reis, 1996: 34).
Tanto na África como no Brasil, através das atividades do comércio, as mulheres conseguiram acumular consideráveis quantias em dinheiro, conseguindo comprar sua autonomia política e sócio-econômica, bem como sua liberdade do ponto de vista civil, portanto, a possibilidade de expansão. Expressão por excelência do poder feminino de expansão, o sangue menstrual é considerado pela cultura iorubá como símbolo de fertilidade. Em reverência a esse poder, Oxalá, divindade representativa da fertilidade masculina, usa uma pena vermelha do papagaio – ekodidé. Com esse ato simbólico Oxalá exibe a idéia fulcral da cosmogonia iorubá: a complementaridade entre o masculino e o feminino. Assim, no centro da mitologia está o sentido da reverência ao grande poder feminino representado pela divindade Oxum e sua simbologia, reatualizada cotidianamente nas comunidades de terreiro: o amarelo gema/ ovo fecundado; abebé/ ventre que acolhe; espelho/ vaidade, beleza jovial; água doce/ riqueza da vida; peixe/ fertilidade e abundância de filhos; coroa (adè)/ realeza; pássaro (éléiyé)/ mãe ancestral (Iyá mi Agbá), sabedoria, mistério, astúcia, sedução e poder de magia (Luz, 2002).
Cabe analizar o fato de que nesta tradição a indumentária, os adereços das Iabás constituem um corpo feminino mítico desterritorializado do lugar da subalternidade: corpo simbólico com adaga, arco e flecha, escudo, que se torna fundamental na constituição identitária. O próprio pente, artefato sacralizado utilizado por Oxum, é a expressão de uma sensualidade que mais captura do que coloca o feminino como presa. Aqui, o feminino é o sujeito desejante e instituinte, que só tem o seu poder obstaculizado pela ação masculina. Mais uma vez a cosmogonia iorubá nos traz elementos para reflexão, ao mostrar que a possibilidade de fragilização do poder feminino decorre da divisão das mulheres provocada pela razão masculina: a divisão de Obá, Oiá, Oxum e Iemanjá enfraqueceu a subversão feminina e o movimento feminista desencadeado pela organização da sociedade Geledé. Planos arbitrários e violentos, gestados na solidariedade masculina, inclusive com o uso de estupro, levaram à fragilização do poder feminino. Do mesmo modo, contemporaneamente, a falta de solidariedade entre as mulheres gera vantagens ao poder masculino (e certamente ao capitalismo também).
Em pesquisa realizada com mulheres adeptas do candomblé, encontrei recorrentes alusões ao discurso mítico de tradição iorubá para explicar formas de conduta vinculadas a representações do poder feminino de transgressão e combatividade, como no excerto a seguir: “não tenho medo de nada... Sou de Obá, deusa guerreira, que anda com sua espada em punho, pronta pra guerrear (...) Não tem homem certo!” - Jane, 32 anos. O processo de identificação com a representação mítica de um feminino combativo parece fundamental na construção de uma subjetividade pronta para o enfrentamento dos dilemas do cotidiano.
Paralelamente, o território da comunidade de terreiro aparece como uma possibilidade de recurso memorial ético-político, de viés emancipatório. A participação nestes territórios pode ser considerada, então, como potencializadora de processos de afirmação positiva da pertença étnico-racial, como demonstra Jane: “na minha certidão vem ‘parda’, mas eu sou negra. Tenho consciência racial. Depois que eu participei da religião afro [mostra uma foto em que ela aparece com trajes rituais e fios de conta identificadoras dos orixás da Casa] é que eu aprendi a amar a minha cor”.
Nessa direção, acrescente-se que é comum nos terreiros assistirmos mulheres enfeitando-se para as festas públicas; por exemplo, trançando os cabelos.
Esta é uma atividade do comércio feminino de tradição iorubá, que é aprendida em família e, recriando a memória, reatualiza significados de pertença. Trata-se de uma experiência que, nesta cultura, só se confia a amigos ou parentes (consangüíneos ou espirituais), pois que no cabelo “tem axé pessoal” e na cabeça (ori), “mora o orixá”. Assim, pelo poder feminino, se une o presente à ancestralidade, e se identifica/ revela o pertencimento étnico (Lody, 2004).
Considerando-se o lento e constante processo de desafricanização dos símbolos negros e, portanto, sua desetinização, o papel do poder feminino de preservação do conjunto desses bens simbólicos legados pela tradição iorubá ganha relevo, sobretudo se pensamos, como realça Prandi (2000), que fora do campo religioso, nenhuma das instituições culturais africanas sobreviveu. Desse modo, nos territórios das comunidades de terreiro de tradição iorubá, são recriados valores, idéias e ideais. Mais do que isso, é reinventada uma etnicidade mítica resgatando uma maneira de ser e viver o feminino fora dos padrões hegemônicos da sociedade ocidental, que visa a subordinação das mulheres.
É assim que, hoje, Janes, Stellas, Olgas, Beatrizes, Marias, e tantas outras vivenciam, através desta tradição, a possibilidade de produção de estratégias de resistência e recriação de identidades culturais, onde a etnia, a classe e o gênero são instâncias mediadoras do exercício do poder.
É nessa direção que se coloca a importância desse tema: desvelar como o poder e o feminino se articulam nesses territórios negros e de que forma as mulheres são, vivem e exercem poder nesse espaço e na sociedade.
NOTAS
Na concepção aqui adotada o poder refere-se ao complexo das posições sócio-políticas ocupadas nas quais os/as agentes sociais são capazes de alterar a correlação de forças sociais dominantes e obter reconhecimento de suas capacidades.
Entende-se representações como um conjunto de idéias, sentimentos e valores acerca de determinado fenômeno ou símbolo.
A concepção de identidade aqui expressa refere-se a um discurso de inclusão ou exclusão, vinculando sujeitos sociais a uma determinada localização ou posicionalidade na estrutura da sociedade. Relaciona-se a um complexo representacional, incluindo representação e auto-representação.
Conforme define Sodré (1999: 34), o discurso da identidade liga os sujeitos a quadros de referências, bem como diz sobre o reconhecimento de um ‘outro’ que classifica socialmente. Desse modo, os processos de identificação operam a partir das relações com os indivíduos, vivos e mortos.
Toma-se a expressão território não como espaço físico, geográfico, mas enquanto espaço sócio-político de que fazem uso determinados grupos para (re)afirmar valores e (re) construir identidades.
Conjunto de praticantes das religiões de matriz africana.
Negritude é um complexo de iniciativas que pretendem reverter o sentido atribuído a tudo aquilo que se encontra relacionado aos afrodescendentes e sua cultura, dando-lhe um sentido positivo.
Iyalodé é um título honorífico que relaciona a mulher ao poder ancestral feminino.
Mito é uma mensagem simbólica capaz de expressar os modos de pensar e viver de um determinado grupo social, incluindo-se as formas que os serem mantêm entre si e entre eles e o mundo. Assim, sua compreensão traz a possibilidade de recontrução histórica dos elementos de uma cultura.
Dipáspora é um termo de origem grega que significa dispersão, disseminação de um povo pelo mundo, relacionada a perseguições, como ocorreu com os judeus e os ciganos, ou com a escravidão, como a ocorrida com os negros africanos.
Referências Bibliográficas
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[1] Palestra apresentada no IX congresso Internacional de Cultura Iorubá, na Uerj na mesa “O poder e o feminino na tradição Iorubá.”
[2] Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1999), é professora adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro, atuando principalmente nos temas: gênero, serviço social, etnia, ética e violência.